A IMPORTÂNCIA DO BRINCAR NA
CONSTITUIÇÃO PSÍQUICA
Nair Macena de Oliveira
“Fruto de enganos ou de amor,
nasço de minha própria contradição.
O contorno da boca,
a forma da mão, o jeito de andar
(sonhos e temores incluídos)
virão desses que me formaram.
Mas o que eu traçar no espelho
há de se armar também
segundo o meu desejo.” (Lya Luft)
nasço de minha própria contradição.
O contorno da boca,
a forma da mão, o jeito de andar
(sonhos e temores incluídos)
virão desses que me formaram.
Mas o que eu traçar no espelho
há de se armar também
segundo o meu desejo.” (Lya Luft)
Um dos significados da palavra
brincar é recrear, que me levou a aproximação com outra palavra, recriar, que
significa criar novamente, tornar-se a criar. Podemos dizer que a criança está
sempre em processo de criação e recriação e, através do brincar ela se recria,
o brincar é estruturante do psíquico.
Portanto, constatamos a
importância do trabalho da recreação, principalmente num hospital pediátrico,
momento no qual a criança ao ser internada é arrancada de seu ambiente familiar
e dos vínculos sociais: escola, vizinhos, amigos, etc, tendo que permanecer num
leito de hospital submetida a procedimentos dolorosos, jogada numa posição
passiva, na ameaça de desamparo e morte.
A recreação seria um mundo dentro
do hospital, mas um mundo que vai além do hospital, no sentido de se tratar de
outro lugar onde a criança está compartilhando o lado saudável e lúdico da
vida, havendo a possibilidade de colocar-se na posição ativa e produzir algo
com os semelhantes, outras crianças, os pais, as recreacionistas e outros.
Através dessas relações pode se dar o que Bergès(2002) conceitua como
transitivismo, as reações que um provoca ao outro movidas pelo afeto e
manifestadas pela discurso que dá acesso ao simbólico, produzindo inscrições do
pulsional no corpo da criança.
Observamos que na palavra
recreação há “ação” que significa: ato, feito, obra, manifestação de uma força,
de uma energia, de um agente, etc.
A nós coube falar sobre
comportamento e vínculo filho-mãe-família no que envolve a recreação e
consequentemente o brincar.
Em relação ao vínculo pensei em
falar um pouco da constituição da criança em sua integralidade: orgânico e
psíquico, que dependem da relação com a mãe, o pai, o restante da família e o
social.
Iniciaremos lembrando que um
filho vem para preencher o que falta aos pais, tudo aquilo que os pais não
conseguiram ser ou ter, dentro de seus ideais, que tem a ver com os ideais de
seus próprios pais, envolvendo também as gerações anteriores das duas famílias,
esses ideais serão a força do desejo aos seus filhos. Mas são ideais que nunca
serão alcançados dessa forma colados aos ideais dos pais, é preciso alguma
disparidade, algum descolamento dos ideais dos pais para que o sujeito se
instaure.
Essa criança existe no desejo dos
pais muito antes de ser concebida, muitas vezes já aparecendo em seus
discursos. Durante a gestação já deve ocorrer uma comunicação entre os pais e a
criança, fruto do desejo dos pais e, já antes de nascer ela é imaginarizada
pelos pais, através da antecipação que também é a transmissão desse desejo.
E, é também esse desejo dos pais
que vai tirar a criança da pura necessidade orgânica, fazendo através da
palavra, inscrições no organismo, constituindo assim o psíquico, demarcando
bordas e limites que darão corpo à criança.
A fome é um exemplo de
necessidade, mas o alimento além de ser o leite, é o amor, o cuidado, o
carinho, o desejo que este filho cresça e tenha vida própria, separado da mãe.
Se o mal-estar provocado pela tensão interna permanece inominável, isso
significa a morte.
Bergès(2002) “…a mãe, no seu
discurso e pelo seu discurso, inscreve o corpo de seu filho em um corpo de
linguagem, constituído de significantes e letras.”
Inicialmente, nessa relação
mãe-filho há uma ilusão de completude que mais adiante será frustrada para que
a criança possa se estruturar psiquicamente como sujeito diferenciado, com sua
própria subjetividade.
As idas e vindas da mãe, ou de
outro cuidador, quem esteja no lugar de função materna, em função dos cuidados
de maternagem vão possibilitando a representação de sua ausência à criança,
permitindo a percepção do objeto externo, a mãe, operando uma diferenciação
inicial entre eu e não eu.
É indispensável que a mãe possa
sair dessa posição de completude mortífera com a criança, que possa abrir
frestas a que outros objetos permeiem a relação. E, nesse momento o pai como
função paterna tem papel fundamental, é ele que castra a mãe da criança, e a
criança da mãe. A posição de completude é mortífera porque a criança não teria
uma existência própria como sujeito separada da mãe e sua estrutura psíquica
ficaria então comprometida.
O brinquedo entra também como
terceiro objeto, na tentativa de elaborar a ausência da mãe.
No Museu do Louvre em Paris,
existem brinquedos de 2800 anos antes de Cristo. Isso prova que as crianças,
independente de época ou de tipos de brinquedos, sempre brincaram. O que
reforça a idéia de que essa repetição do brincar diz da estruturação psíquica
do sujeito na infância.
Winnicott(1975) que nos fala do
brinquedo transicional das crianças pequenas: o paninho, o ursinho, a
bonequinha, etc.
Tavares(1996) diz que esses
brinquedos transicionais não são representantes nem da criança, nem da mãe, mas
daquilo que colocou Lacan: esse objeto representa o significante da falta na
mãe, isto é o desejo materno, que a criança seja para a mãe um objeto
transicional. Assim, o desejo materno permite, então, que a criança possa
investir esse outro objeto.
Freud(1920) no texto Além do
Princípio do Prazer fala da uma observação que fez de seu próprio neto de 01
ano e meio. Esse menino estava se desenvolvendo normalmente conforme sua idade,
dizia apenas algumas palavras compreesíveis e utilizava uma série de sons, com
significado inteligível aos que o rodeavam. Nunca chorava quando sua mãe o
deixava por algumas horas. Ao mesmo tempo era bastante ligado a mãe, que tinha
não apenas de alimentá-lo, como cuidava dele sem ajuda externa. Esse bom
menininho contudo, tinha o hábito ocasional e perturbador de apanhar quaisquer
objetos que pudesse agarrar e atirá-los longe para um canto, sob a cama, de
maneira que procurar seus brinquedos e apanhá-los, quase sempre dava bom
trabalho. Enquanto procedia assim, emitia, um longo e arrastado “o-o-o-ó”,
acompanhado por expressão de interesse e satisfação. Sua mãe e o avô, Freud,
concordaram que isso representava a palavra alemã “fort” , que no português
significa a expressão “ir embora”. Freud acabou por compreender que se tratava
de um jogo e que o único uso que o menino fazia de seus brinquedos era brincar
de “ir embora” com eles. Certo dia fez uma observação que confirmou seu ponto
de vista. O menino tinha um carretel de madeira com um pedaço de cordão
amarrado em volta dele. Nunca lhe ocorrera puxá-lo pelo chão atrás de si, por
exemplo, e brincar com o carretel como se fosse um carro. O que ele fazia, era
segurar o carretel pelo cordão e com muita perícia arremessá-lo por sobre a
borda de sua caminha de maneira que aquele desaparecia por entre as cortinas,
ao mesmo tempo que o menino proferia seu expressivo “o-o-o-ó”. Puxava então o
carretel para fora da cama novamente, por meio do cordão e saudava seu
reaparecimento com um alegre “da” que em português significa “aqui”. Essa,
então era a brincadeira completa: desaparecimento e retorno.
A interpretação do jogo tornou-se
então óbvia. Ele se relacionava à grande realização cultural da criança, a
renúncia pulsional, a renúncia à satisfação pulsional, que efetuara ao deixar a
mãe ir embora sem protestar. Compensava-se por isso, encenando ele próprio o
desaparecimento e a volta dos objetos que se encontravam a seu alcance.
No início, a criança achava-se
numa situação passiva, era dominada pela experiência; repetindo-a, porém, por
mais desagradável que fosse, como jogo, assumia papel ativo.
É claro que em suas brincadeiras
as crianças repetem tudo que lhes causou uma grande impressão, na vida real, e
assim procedendo, ab-reagem a intensidade da impressão, tornando-se, por assim
dizer, senhoras da situação.
Santa Roza(1993) em seu livro:
Quando Brincar é Dizer, refere que os fenômenos transicionais podem ser
compreendidos como precursores das operações simbólicas, apontando para um
momento de transição a partir do qual irá surgir uma série de jogos com o caráter
de ocultação.
Esses se desdobram em várias
brincadeiras de desaparecimento e reaparecimento: ocultar o rosto com uma
fralda e desvendá-lo, deixar cair objetos para o adulto resgatar, lançá-los à
distância, abrir e fechar caixas e portas, jogos mais complexos de
esconde-esconde, onde o prazer reside na ocultação e desvendamento do próprio
corpo ou do corpo do adulto.
Esses jogos repetitivos são já
constituídos então em torno da dialética da presença e da ausência, de um par
de opostos que rege e inaugura o universo simbólico.
A contribuição de Lacan a
respeito do jogo fort-da foi assinalar que ali irá aparecer propriamente a
dimensão da palavra. Lacan(1979) “É quando o objeto está lá que ela o manda
embora, e quando não está lá que o chama. Por esses primeiros jogos, o objeto
passa como que naturalmente para o plano da linguagem. O símbolo emerge e
torna-se mais importante do que o objeto”.
Freud(1920) ainda acrescenta que
todas as brincadeiras das crianças são influenciadas por um desejo que as
domina o tempo todo: o desejo de crescer e poder fazer o que as pessoas
crescidas fazem.
Pode-se também observar que a
natureza desagradável de uma experiência nem sempre a torna inapropriada para a
brincadeira. Se o médico examina a garganta de uma criança ou faz nela alguma
pequena intervenção, podemos estar inteiramente certos de que essas
assustadoras experiências serão tema da próxima brincadeira.
Freud(1908), texto: Escritos
Criativos e Devaneio, refere que a criança leva muito a sério a sua brincadeira
e dispende na mesma muita emoção. A antítese do brincar não é o que é sério,
mas o que é real. Apesar de toda emoção com que a criança investe seu mundo de
brinquedo, ela o destingue perfeitamente da realidade, e gosta de ligar seus
objetos e situações imaginados às coisas visíveis e tangíveis do mundo real.
Essa conexão é tudo o que diferencia o “brincar” infantil do “fantasiar”.
A criança em crescimento, quando
pára de brincar, só abdica do elo com os objetos reais; em vez de brincar, ela
agora fantasia. Constrói castelos no ar e cria o que chamamos de devaneios.
A ênfase colocada nas lembranças
infantis da vida do escritor, deriva, basicamente da suposição de que a obra
literária, como o devaneio, é uma continuação ou substituto, do que foi o
brincar infantil.
Jerusalinski(1987) referindo-se a
antecipação coloca que a criança é introduzida na dialética da demanda e do
desejo através daquilo que o Outro ( presença abstrata do social no discurso)
lhe impõe como retribuição, como preço a pagar, pelo reconhecimento: dar
testemunho de sua diferença sexual e de seu desejo de ocupar um lugar definido
na circulação social possível.
São os pais que encarnam essa
demanda, colocando seus pequenos filhos no impasse de ser, na sua
subjetividade, homem ou mulher quando ainda não têm condições de sustentar as
consequências de tal posição subjetiva; como também acontece com os papéis
sociais que, das crianças, se espera no futuro, mas já hoje se solicita a prova
de que os poderão suportar. Para a criança responder a esse Outro não lhe resta
senão brincar do que ainda não é, ou seja, brincar de “vir-a-ser”. Desde esse
futuro de ser em fartura ( pelo que a estrutura lhe impõe), conjuga seu
presente insuficiente, recobrindo-o com o ideal, justamente para não ter que
contemplar a sua “miséria atual”.
“Agora eu era o herói. Agora eu
era o rei, era o bedel e também juiz”- ( Chico Buarque).
O buraco que se abre entre a
insuficiência, o real e o ideal, a criança recobre com esse imaginário que é o
brincar. Tenta realizar, então, esse impossível, sendo por isso que aparecem
também no brincar da criança essas figuras mágicas, as fadas, os reis, os
heróis, esses que podem realizar o impossível.
Tavares(1996) traz que outro
exemplo dos sintomas da infância são as cenas que nos remetem a um deslocamento
do ideal do Outro, da demanda do Outro. São os pequenos enganos, essas pequenas
mentiras das crianças, a arte, a travessura, fazer aquilo que não está
exatamente no programa pré-estabelecido pelos pais, ou seja, um deslocamento da
demanda do Outro, uma resposta não-direta ao ideal que o Outro coloca em cena.
E, cita a palavra arte e a beleza em português de sua polissemia, significando
tanto fazer travessuras, como fazer uma obra, a criação artística. Poderíamos
dizer que a produção de algo novo implica a “travessura” ( talvez início de uma
travessia) de se deslocar de uma posição esperada, do imperativo do Outro.
A criança vai produzir outra arte
que é o desenho e também vai brincar. Nessa brecha que aparece entre a sua
insuficiência e o ideal, a criança vai brincar de vir-a-ser. Vai fazer uma
brincadeira para construir a ponte entre essa insuficiência e o ideal para
articular algum saber próprio, brincando de vir-a-ser grande.
Agora vou trazer duas situações
que dizem de minha experiência aqui neste hospital com a finalidade de
relacionarmos com o conteúdo teórico citado.
Um caso de uma criança, um menino
que possuía, na época, em torno de 04 anos, estava internado na Unidade de
Onco-hematologia, era acometido de uma doença importante no sangue, a qual
exige maiores cuidados no sentido de prevenir machucados pelo corpo. E, este
menino mostrava-se agitado, permanecia no leito com as grades erguidas,
necessitando desse limite. A mãe, por sua vez permanecia quase o tempo todo no
hospital, mas quando estava com ele, não havia um olhar de desejo e aposta
neste filho, parecia não estar lá, parecia distante, não havendo uma troca com
a criança. Por vezes tornava-se intolerante e batia nele.
Em nossos atendimentos,
observamos que o menino se acalmava quando conversávamos com ele e
desenvolvíamos alguma atividade. Ele já produzia um traçado bem definido dos
objetos em seus desenhos e, com bons recursos de linguagem comentava suas
produções.
Numa de nossas tentativas de
trabalho com a mãe, no sentido de transmitir-lhe a nossa leitura de seu filho,
uma vez que em seu discurso aparecia uma insuficiente aposta nas possibilidades
do menino, procurando mostrar-lhe uma diferança do que nós podíamos observar
nele, ele nos surpreendeu com sua atitude. Ele estava caminhando pela sala na
qual encontrava-se seu leito, eu e sua mãe estávamos na mesma sala, frente à
frente, falando sobre ele. Então, ele nos solicita a prancheta que já estava
com folhas em branco para desenhos, o estojo dos lápis, pede colo a sua mãe e
lhe diz: “mãe, me aprende”.
A palavra aprender significa
tomar conhecimento, mas a situação e esse dizer dele remeteu-me a palavra
apreender que significa: segurar, pegar, agarrar, prender. O que esta criança
estava tentando, magnificamente, transmitir a sua mãe; que pedido era aquele?
Lembro também de uma expressão
que escutei algumas vezes do pessoal da enfermagem, referindo-se as suas
observações de algumas mães que permanecem junto ao seu filho internado, mas
que só estão presentes de “carne e osso”, a “alma” não se manifesta, mães que
não conversam com o filho, não introduzem um brinquedo ou uma brincadeira, a
expressão dita pela enfermagem é: “essa mãe parece que segura um saco de
batatas e não uma criança”
Fonte: http://freudlacan.com.br/a-importancia-do-brincar-na-constituicao-psiquica/
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