Pediatras
receitam brincadeiras diárias como remédio para a saúde mental das crianças;
entenda
Nas duas últimas décadas, o tempo livre
dos pequenos diminuiu 25% e apenas metade deles saem de casa para brincar ou
passear com frequência
Por Giulia Vidale — São Paulo
14/03/2023 04h30 Atualizado há um mês
Brincar de casinha, boneca ou carrinho. De cinco marias, pega-pega, esconde-esconde. Subir em árvore, se sujar na terra ou ir ao parquinho. Provavelmente, todo adulto tem uma brincadeira que marcou sua infância. Infelizmente, o mesmo não pode ser dito pelas crianças de hoje em dia.
— As crianças estão brincando cada vez menos e é claro que isso faz com que elas percam habilidades, felicidade, bem-estar, saúde e a essência da sua infância — afirma o pediatra e colunista do GLOBO Daniel Becker.
Nas duas últimas décadas, o tempo livre das crianças diminuiu 25%. Apenas 50% delas saem para brincar ou passear com frequência. A rua é muito perigosa, parquinhos e praças estão cada vez mais escassos e, os pais, com cada vez menos tempo para acompanhar os filhos nessas atividades. Nesse contexto, as brincadeiras livres, aquelas na quais meninas e meninos se envolvem espontânea e ativamente em uma atividade, foram substituídas por telas e atividades extracurriculares, que tendem a se acumular na agenda da criança à medida que ela envelhece.
Entretanto, brincar é coisa séria. Tanto que a Academia Americana de Pediatria, referência internacional na sua área, chegou a publicar um documento orientando formalmente seus profissionais a receitarem brincadeiras diárias a todas as crianças. A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) também tem uma força tarefa para que os pediatras possam incentivar os pais a proporcionar ambientes de brincadeira para os seus filhos.
— A brincadeira é a atividade essencial da infância porque é através da brincadeira que ela apreende o mundo, se expressa no mundo e compreende o mundo. E é também a forma como a criança relaxa e gera prazer, felicidade consigo mesma. Todos esses são aspectos formadores da pessoa humana — explica Becker.
Mas afinal, o que a brincadeira tem de tão especial que ela é prescrita por médicos, enquanto o uso de tela, não? Pesquisas revelam que brincar refina a atividade do córtex pré-frontal, a região relacionada às características psicológicas e às funções executivas; aumenta a formação de neurônios e a liberação de neurotransmissores ligados à sensação de prazer e bem-estar. Brincar também é o antídoto para o estresse na infância.
De acordo com estudo publicado no Journal of Child Psychology and Psychiatry, crianças de 3 a 4 anos que brincaram sozinhas ou com outras crianças durante quinze minutos apresentaram metade do nível de ansiedade daquelas que simplesmente ficaram ouvindo um professor contar uma história pelo mesmo período.
As brincadeiras estimulam mecanismos no organismo infantil de uma forma que nenhum outro tipo de atividade é capaz de fazer. É brincando que as crianças aprendem e desenvolvem habilidades executivas, sociais, motoras, entre outras.
— Na primeira fase da vida, o cérebro tem uma neuroplasticidade muito elevada, com formação acelerada de sinapses. Brincar, com brinquedos, com os pais ou sozinha, estimula o cérebro e a criação de conexões nas áreas das aprendizagens de determinadas habilidades — diz a pediatra Liubiana Arantes de Araújo, do Departamento de Desenvolvimento e Comportamento da SBP.
Em seu documento de 18 páginas, a Academia Americana de Pediatria divide as brincadeiras em quatro grupos e descreve os benefícios de cada um. O manuseio de objetos, como brincar de carrinho, desenvolve a coordenação motora, a capacidade de comunicação e o pensamento abstrato. Já o faz de conta - brincar de casinha, de escolinha ou de qualquer coisa criada pela imaginação - ensina a negociar regras e desenvolve habilidades do funcionamento executivo (capacidade de planejamento e resolução de problemas).
A atividade locomotora - andar de bicicleta, brincar de esconde-esconde - estimula a habilidade e a inteligência emocional (competências para aprender a perder, a ganhar e a arriscar) e a brincadeira ao ar livre reforça amizades, desenvolve o conhecimento social e linguístico e ajuda a controlar impulsos individuais.
Não há dúvidas que brincar é importante em qualquer idade - até mesmo na vida adulta – mas seu efeito benéfico é maior nos primeiros anos de vida, quando o cérebro infantil apresenta maior plasticidade.
É através da brincadeira que a criança aprende também a avaliar riscos. Ao subir em uma árvore, por exemplo, ela entende onde coloca o pé, como tem que se equilibrar, avalia até onde pode ir e ganha coragem. Até mesmo os machucados – leves, como ralar um joelho ou torcer um tornozelo – podem ser benéficos.
— Um simples joelho ralado ensina à criança que seu corpo pode perder a integridade e vai doer. Mas ela também aprende que a dor vai passar e que seu corpo vai se regenerar. Em função de um pequeno machucado, ela percebe a capacidade vital maravilhosa que a nossa natureza tem de cura, por exemplo — pontua Becker.
O excesso de telas
Muitos acham que a preocupação de médicos e especialistas em relação ao uso de dispositivos eletrônicos por crianças é exagero. Mas a verdade é que um crescente número de evidências aponta para os prejuízos do uso passivo de telas por crianças e adolescentes.
Quando a criança está em frente a uma tela, seja do celular, da TV ou do tablet, seu cérebro está majoritariamente em repouso. Ao passo que para aprender e criar habilidades, esse cérebro precisaria receber múltiplos estímulos.
— Na tela, a criança não estimula várias áreas do cérebro ao mesmo tempo, como ocorre nas brincadeiras, e isso é fundamental para a formação de redes neurais e para o aprendizado — explica Araújo.
A arquiteta Marina Costa Silva e Cassiano, mãe do pequeno Benjamin, de 6 anos, conhece bem os prejuízos que as telas podem causar às crianças. Quando Benjamin tinha apenas 2 anos de idade, ele teve uma crise de ansiedade quando ela não o deixou ficar vendo vídeos no tablet.
— Um dia, eu tirei a tela da frente dele e ele começou a chorar e tremer. Chegou até a vomitar porque eu não dei o celular para ele. Na hora eu liguei para o pediatra e ele recomendou que eu desse um banho quente nele e tirasse a tela. Eu fiz isso e eu vi outra criança. Foi muito óbvio para mim que isso não estava fazendo bem para ele. É claro que ele ainda tem acesso às telas, em especial para assistir desenho, mas com muito menos frequência — conta Marina.
Desde então, ela mesma tenta se policiar quanto ao seu uso de dispositivos eletrônicos, em especial quando está perto do filho. Além disso, Marina tenta incentivar ao máximo que o filho brinque e aproveite sua infância.
— Eu tento resgatar com ele uma coisa que eu tive na infância e que eu não vejo mais hoje em dia, que são brincadeiras que não precisam de nada para brincar. Ele tem uma caixa que ele chama de “sucaixa”, onde ele guarda latinhas, tampinhas, caixinha e todo tipo de coisa. Ele diz que é a sua própria fábrica de brinquedo dele — diz a arquiteta.
As diretrizes atuais recomendam evitar a exposição de crianças de até dois anos de idade às telas. Se isso ocorrer, que seja por no máximo 30 minutos e sempre mediante a interação com um adulto. Para crianças de 2 a 5 anos de idade, o tempo máximo é de uma hora por dia; de 5 a 19 anos, até duas horas diárias e 11 anos em diante, até três horas.
Fonte:https://oglobo.globo.com/saude/medicina/noticia/2023/03/pediatras-receitam-brincadeiras-diarias-como-remedio-para-a-saude-mental-das-criancas-entenda.ghtml
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