Apoiada
por maioria no Brasil, palmada faz mal à saúde mental da criança, afirmam
especialistas
A prática, condenada pelos médicos, pode
ser atalho para quadros de depressão e ansiedade na juventude e vida adulta
Por Mariana Rosário — São Paulo
17/02/2023 04h30 Atualizado há 2 meses
Proibida no país e amplamente
desaconselhada por especialistas em psicologia psiquiatria e pediatria, a
palmada (e outras agressões) em crianças seguem com ampla popularidade por
parte dos brasileiros. Foi o que mostrou uma recente pesquisa realizada pela
Quaest e encomendada pelo banco Genial. Na análise — que ouviu 2.016 pessoas
maiores de 16 anos em 120 municípios, no começo deste mês — 56% dos
respondentes concordaram que “é normal que a criança apanhe dos pais”. Uma
importante fatia (42%), é importante dizer, disseram discordar da prática e 2%
não souberam opinar. A margem de erro é de 2,2 pontos percentuais para mais ou
para menos.
Nos consultórios de
psicologia e psiquiatria, a truculência dos pais é justificada por toda sorte
de razões: “era assim quando eu era criança”, dizem uns; “não sei o que fazer
quando meu filho perde o controle”, despistam outros. Ou então: “meu irmão não
apanhou na infância e se tornou uma pessoa irresponsável”, explicam alguns.
Especialistas, contudo, refutam todas essas ideias e classificam o hábito de
agredir crianças — mesmo no auge da birra — como inútil e nocivo, para ficar em
somente dois adjetivos.
Parte dessa compreensão é fruto de uma série de análises científicas que classificam a agressão física às crianças como atalho para danos à saúde mental, comportamento violento e outras dificuldades na vida adulta. “Uma simples palmada já expressa o desrespeito ao direito básico da criança de crescer sem violência. E se insere num gradiente, no qual o espancamento brutal, com risco de vida, figura em um de seus extremos”, pontuou recentemente o pediatra Daniel Becker, em sua coluna semanal no GLOBO.
Para além do direito
desrespeitado, há o dano mental e comportamental. Um recente estudo da
Universidade Católica Australiana mostrou que meninos e meninas que apanharam
na infância tinham, em média, duas vezes mais chances de desenvolver ansiedade
e depressão, quando comparados com os que não passaram por castigos físicos. A
pesquisa foi divulgada no ano passado e fez questionamentos a jovens de 16 a 24
anos. Outra análise, essa de 2021, realizada por especialistas da reputada
Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, demonstra que mesmo a palmada (sem
descambar para violências mais graves) já pode impactar no desenvolvimento
cerebral de maneira negativa.
— A punição
comprovadamente não funciona. A agressão não ensina o comportamento adequado.
Para a criança entender, é preciso repetição das instruções e, com a agressão,
existe a falsa impressão que os meninos e meninas entenderam aquilo
imediatamente. E não é isso que ocorre — explica a psicóloga infantil e
neurocientista a frente do Instituto Singular, Mayra Gaiato. — No caso do
autismo especificamente, parte do diagnóstico é justamente percebido pela
dificuldade na comunicação social. Então, alguns comportamentos são encarados
como maldade, que a criança é mimada, e na realidade pode ser que a criança não
tem instalado em seu repertório como deve agir em determinada circunstância.
A essa altura, pode
ser que muitos cuidadores estejam se lembrando que também levaram uma palmada
aqui, um beliscão ali ou outro tipo de punição pontual na infância e, bem,
chegaram com uma boa saúde e estrutura emocional na vida adulta. Os
especialistas, contudo, tem uma explicação específica para casos assim.
— A palmada entra no
problema do senso comum. Muitas vezes isso acontecia na vida da pessoa ou de
alguém próximo e não levou a um transtorno mental. Mas não é exatamente assim
com o cigarro? Não são todos que fumam que terão câncer de pulmão. Por outro lado,
existe uma evidência estatística muito clara da relação entre o hábito e a
doença. No caso da palmada há o mito que no momento que ela ocorre é algo
positivo, que é um limite. É difícil explicar para os pais que apesar do afeto
que os pais tenham pela criança, eles estão causando um dano para o futuro —
afirma Alaor Carlos Oliveira, coordenador do serviço de psiquiatria do Hospital
Oswaldo Cruz.
Orientações internacionais
Se ainda cabe falar
mais em análises, pesquisas e estudos, é bom rememorar que a Academia Americana
de Pediatria, no finalzinho de 2018, ratificou sua posição contrária às
palmadas, surras e toda sorte de agressão contra crianças. A carta, publicada
no periódico Pediatrics mostrou que somente
2,5% dos pediatras consultados em um levantamento da época acreditavam que
alguma coisa boa pode vir de uma agressão física em crianças. A esmagadora
maioria é contrária e vê na prática a raiz de problemas mais sérios e
profundos. Caso não tenha ficado claro, eles enumeram: há aumento do nível de
estresse, impacto no desenvolvimento do cérebro, piora na saúde mental e no
convívio social.
“Estratégias
disciplinares aversivas, incluindo todas as formas de punição corporal e gritar
ou envergonhar crianças, são minimamente eficazes a curto prazo e ineficazes a
longo prazo. Com novas evidências, os pesquisadores vinculam a punição corporal
a um risco aumentado de resultados comportamentais, cognitivos, psicossociais e
emocionais negativos para eles”, escreveram os especialistas.
— Existe a corrente de
pessoas que dizem ser a favor de beliscões, tapinhas e até agressões mais
brutais. Em outra mão, há pessoas totalmente contra. O que vemos na área
clínica, de atendimento, é que o impacto dessas agressões físicas e verbais
deixa a criança amedrontada. O comportamento que, inicialmente, parece
malcriação (dos pequenos) é, na realidade, necessidade de conversa. É uma
oportunidade do adulto se aproximar, é a chance de indicar para a criança
expressar o que sente — diz Claudia Feldman. Fundadora, diretora clínica e
terapeuta do Núcleo de Estudos e Terapia (Netaf).
Combinados e consequências
Embora seja
trabalhoso, o melhor caminho para resolver momentos em que os herdeiros
desafiam sua paciência é, sim, o diálogo. Como diz Cristina Borsari,
coordenadora de psicologia do Sabará Hospital Infantil, é preciso “fazer
combinados com a criança”.
— Os combinados
precisam ser reais e efetivos. A criança fez algo que os pais não gostaram? Ao
invés de proibir o videogame por três semanas, algo que é muito difícil de se
manter, reduza o tempo de jogo em um terço. É um mecanismo de traçar
estratégias por meio do diálogo, explicando sempre que aquele comportamento foi
errado. Não é punição, é mostrar para a criança que ela é protagonista do
comportamento que precisa ser mudado. As penalidades precisam ser lógicas —
diz. — No consultório vemos que falta paciência e tranquilidade para entrar no
universo dos pequenos.
Se a
crise apertar, no momento da birra, é preciso respirar fundo, olhar no olho da
criança e, apesar dos protestos, sem erguer o tom de voz orientá-la que é
preciso parar com o acesso de irritação. Os especialistas pedem que a criança
seja preservada e que se evite a todo custo envergonhá-la publicamente. — Os
pais devem neutralizar esse comportamento — afirma Cristina, do Sabará. Os
pequenos agradecem.
Fonte:https://oglobo.globo.com/saude/noticia/2023/02/apoiada-por-maioria-no-brasil-palmada-faz-mal-a-saude-mental-da-crianca-afirmam-especialistas.ghtml
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